Por
causa da pandemia da Covid-19 algumas leis foram aprovadas visando
manter um equilíbrio entre a oferta do produto ou do serviço e a
aquisição pelo consumidor.
Hoje
abordo um ponto, com o seguinte acontecimento: o consumidor adquiriu o
ingresso para assistir a um show de um específico artista estrangeiro.
Por causa da pandemia, o show foi adiado. O fornecedor deu a ele, então,
um crédito para que possa ir ao evento na próxima data a ser anunciada.
Aliás, a lei 14.406, de 24/8/2020 garantiu esse direito.
Acontece
que, passadas algumas semanas, o artista informou que não fará mais o
show no Brasil. Ele cancelou definitivamente sua apresentação.
Pergunto: e agora? O consumidor é obrigado a ficar com o crédito para assistir um outro show?
Respondo na sequência.
Primeiramente,
anoto que lei supra referida não é de todo fora de contexto. Na
realidade ela apenas reconheceu o grave problema dos adiamentos de
eventos por causa da pandemia.
Já
escrevi aqui mesmo nesta coluna que o evento da Covid-19 é algo
extraordinário e assim deve ser encarado do ponto de vista jurídico.
Sabemos que o Código de Defesa do Consumidor (CDC) não apresenta como
excludente do nexo de causalidade o caso fortuito e a força maior. Mas,
essas hipóteses são de fortuito interno e força maior interna.
Contudo,
quando se trata de fortuito externo, está se fazendo referência a um
evento que não tem como fazer parte da previsão pelo empresário na
determinação do seu risco profissional. A erupção de um vulcão é típica
de fortuito externo porque não pode ser previsto. Ocorre igualmente em
caso de terremoto ou maremoto (ou, como se diz modernamente, tsunami).
E,
naturalmente, o mesmo se deu e se dá na eclosão de uma pandemia, como
esta da Covid-19. Evento absolutamente fora de qualquer possibilidade de
previsão e, infelizmente, inevitável.
Reforço que todas as relações jurídicas foram afetadas. Falo de todas porque ninguém
escapou. A diferença para alguns é que o evento acabou trazendo
benefícios, pois puderam produzir e vender mais, os estoques acabaram
etc. Porém, em milhares, aliás, milhões de relações jurídicas (de
consumo ou não) a situação, de fato, foi e é de prejuízo para os dois
lados da relação (ou para os vários lados da relação).
Eis
o ponto importante: o evento incerto, isto é, o fortuito externo atinge
inteiramente a relação jurídica de consumo. Vale dizer, afeta os dois
lados da relação, o do fornecedor e o do consumidor.
E
não resta dúvida alguma de que, se o evento, qualquer que seja ele,
estava marcado para datas dentro do período de quarentena, ambos os
lados da transação (consumidor e fornecedor) podem simplesmente rever o
negócio, sem possibilidade de cobrança de multa ou de pagamento de
indenizações.
Muito
bem. Seguindo essa linha, a lei 14.406, de 24/8/2020 regulou a questão
dos adiamentos e cancelamentos de eventos, shows etc. Para o que nos
interessa aqui, faço referência ao artigo 2º e seu parágrafo 6º.
Com efeito, dispõe o caput do art. 2º:
"Art. 2º Na hipótese de adiamento ou de cancelamento de serviços, de reservas e de eventos, incluídos shows e
espetáculos, em razão do estado de calamidade pública reconhecido
pelo decreto legislativo nº 6, de 20 de março de 2020, e da emergência
de saúde pública de importância internacional decorrente da pandemia da
Covid-19, o prestador de serviços ou a sociedade empresária não serão
obrigados a reembolsar os valores pagos pelo consumidor, desde que
assegurem:
I - a remarcação dos serviços, das reservas e dos eventos adiados; ou
II
- a disponibilização de crédito para uso ou abatimento na compra de
outros serviços, reservas e eventos disponíveis nas respectivas
empresas." (grifei)
Os cinco primeiros parágrafos desse artigo regulam prazos e o parágrafo 6º estabelece o seguinte:
"§
6º O prestador de serviço ou a sociedade empresária deverão restituir o
valor recebido ao consumidor no prazo de 12 (doze) meses, contado da
data de encerramento do estado de calamidade pública reconhecido
pelo decreto legislativo nº 6, de 20 de março de 2020, somente na hipótese de ficarem impossibilitados de oferecer uma das duas alternativas referidas nos incisos I e II do caput deste artigo." (grifei)
Vejamos
então, o que está acontecendo: como na redação do §6º o legislador se
utilizou de uma disjuntiva (ou), então, se o fornecedor oferecer
qualquer das duas alternativas, cabe ao consumidor aceitá-las e pronto.
No caso do referido show do artista estrangeiro, basta remarcar o evento
ou, na sua impossibilidade, oferecer crédito para o consumidor
utilizá-lo em outro evento.
De
fato, talvez isso resolva muitas hipóteses. Mas, retorno à minha
pergunta: e se o artista cancelou, o consumidor é obrigado a assistir um
show de outro artista?
Ou, perguntando de outro modo: o consumidor comprou uma coisa e a lei o obriga a levar outra?
Minha resposta é não!
A
lei é clara, mas o inciso II do art. 2º somente pode ser entendido como
uma opção oferecida ao consumidor. Jamais uma obrigatoriedade, pois
isso viola um princípio básico do Código de Defesa do Consumidor (CDC),
que é o da liberdade de escolha (art. 6º, inciso II do CDC).
Não
nos esqueçamos que o CDC é uma lei geral de ordem principiológica, que
não pode ser simplesmente contrariada. Para tanto, seria necessário sua
modificação ou uma ampla regulação do setor por normatização completa, o que, naturalmente, não é o caso da lei 14.406 acima citada.
E
mais: a situação regulada pela lei é estranha. Ela não pode obrigar o
consumidor a adquirir algo que ele não queira. Seria o mesmo que obrigar
um consumidor que encomendou uma roupa, que não será mais entregue e
obrigá-lo a ficar com uma mala; ou que adquiriu um ingresso para
assistir a uma palestra de um importante comunicador, que não mais virá,
e obrigá-lo a receber, em seu lugar, um ingresso para um show musical
etc. Os exemplos são inúmeros.
O
fato é este: não pode a lei obrigar o consumidor a comprar algo que ele
não escolheu. Direito de escolha é uma garantia fundamental.
Lembro
que, mesmo nos casos de vícios dos produtos e serviços, o CDC garante
ao consumidor seu direito de escolha. Ele pode aceitar a substituição do
produto ou a restituição da quantia paga (art. 18, § 1º, incisos I e II e art. 19, caput, incisos III e IV) e a reexecução do serviço ou a restituição da quanta paga (art. 20, caput, incisos I e II). Realço: quem escolhe é o consumidor. Essa é a regra e o princípio que valem.
Por fim, consigno que, claro, concordo
que a lei pode regular prazos. Mas, repito: no caso que citei do
cancelamento pelo artista, se o consumidor não quiser trocar por outro
evento, o valor que pagou deve ser devolvido.